Discutindo surtos de cura e afins:
4 - Surtos de Cura: de todas as mudanças percebíveis ou ilusórias sobre a quarta edição, esse é o elemento mais drástico. Os surtos de cura alteram muito o gerenciamento de grupo como conhecemos nas edições anteriores. Mas antes de falar sobre eles, vamos ver como era uma sessão típica nas edições anteriores:
“O bravo grupo de heróis descobriu a passagem secreta para a lendária “Catacumba do Medo”. Chegando na primeira câmara do lugar, são surpreendidos por uma horda de esqueletos guardiões. Ao final da luta, Zé, o guerreiro, havia sido mortalmente ferido e lhe restavam apenas 5 pontos de vida (dos seus 30 usuais). Sabendo que a próxima câmara provavelmente lhes reserva mais um difícil batalha, Chico, o clérigo, usa duas das suas curas diárias para elevar os pvs de Zé para 21. Confiante de que não se deixarão serem surpreendidos novamente, o grupo prossegue para o próximo encontro da aventura.”
“Usando os seus sentidos super-aguçados, João o elfo descobre uma passagem secreta que dá numa sala abarrotada de tesouros. Pedro o ladrão, ganancioso, investe rapidamente até a pilha e agarra um ídolo encrustado de rubis que parece valiosíssimo. Mal sabe ele que o ídolo é um item amaldiçoado que drena a força vital daqueles que o tocam, falhando no subsequente teste de resistência contra os poderes nefândicos do objeto. Pedro cai como um saco de batatas no chão, morto. Adiantando-se, Chico invoca a misericódia do seu Deus pela vida do pobre ladrão (até parece) e é atendido (quem sabe os planos do Deus de Chico para com Pedro), ressuscitando o infeliz aventureiro. Prometendo não se deixar levar pela ganacia tão rápido no futuro, o grupo prossegue para o próximo nível da masmorra.”
Agora vamos imaginar essas cenas sem o personagem do Chico na história. No primeiro exemplo, Zé, com seus míseros pontos de vida restantes, não sabe que na próxima câmara vis Carniçais tem um toca. Na luta inevitável, no primeiro ataque que receber dano, as chances são altas de que venha a ser levado a 0 pontos de vida e morra. O jogador de Zé, que não é bobo, assim que termina o encontro com os esqueletos, sugere que o grupo volte a cidade para poder recuperar seus ferimentos e poderem continuar, provavelmente semanas depois. E se o reino dependia do grupo para impedir um ritual maléfico que estava acontecendo naquele instante na Catacumba, a falha em conseguir prosseguir também selaria o destino do reino. No segundo exemplo, depois de sofrer os resultados de sua estupidez, o jogador de Pedro não tinha outra alternativa a não ser observar o restante do grupo continuando pelo restante da aventura, possivelmente acabando com sua noite de diversão.
Como podemos ver, a presença de um clérigo no grupo era vital para a continuação da própria aventura. Sem ele, a menos que o mestre estivesse muito bonzinho ou roubá-se a favor dos jogadores, a taxa de mortalidade seria alta, e existia uma grande possibilidade do grupo não conseguir sobreviver logo aos primeiros encontros, acabando a diversão de muita gente mais cedo. Foi com essa constatação que Gary Gigax se viu ao conceber o papél do clérigo no D&D. Quase uma garantia de que os mais bizarros plots e mais difíceis encontros pudessem funcionar sem terminarem abruptamente por causa de alguma maré de azar ou própria falta de cuidado de jogadores desavisados. Acontece que mesmo o jogo mostrando explicitamente a importância de um clérigo em jornadas e missões mais longas e difícieis, muitos grupos, ou por falta de integrantes suficientes, ou por causa de insensatez, se enfiavam nas aventuras sem um, o que causava uma das situações tristes acima a acontecer de verdade.
Além disso, o clérigo contribuia para a sensação tática da parte de jogo (em contradição com a parte de interpretação) do D&D, assunto já discutido em um post anterior.
Vários jogos, inclusive versões do D&D, tentaram atenuar isso em sistemas e cenários onde o papél do clérigo é inexistente. Entre um recente, temos o Iron Heroes, um jogo D&D variante sobre guerreiros num mundo violento onde a magia era no mínimo não-confiavel. Nesse mundo clérigos eram apenas pessoas com um posição social sem poderes mágicos associados a sua profissão. Sem cura mágica, certamente. Como esses guerreiros poderiam sobreviver ao seu próprio mundo e alcançarem os mais altos níveis de realização e poder? Com Pontos de Reserva. Esse mecanismo, que dava uma soma de pontos de vida potenciais que um personagem poderia usar para se curar entre os combates garantia que a aventura não iria parar nos primeiros encontros por causa de longos períodos de cura natural. Para o D&D 3.5, no Unearthed Arcana, um livro de regras variantes, um sistema parecido permitia a um grupo sobreviver num mundo sem cura mágica ou num grupo que não houvessem clérigos.
É fácil ver agora as origens do conceito dos surtos de cura, um mecanismo de garantia de plot mesmo sem um clérigo no grupo. Inclusive, o conceito do clérigo foi expandido com a definição do papel líder, garantindo que outros tipo de personagem conseguem substituir o clássico sacerdote nessa função de cura. Realmente, isso muda a dinâmica do sistema drasticamente, pois agora grupos sem líderes ainda tem seus meios pa\ra continuar a batalha sem terem que voltar a vila mais próximo e deixar aquele ritual maléfico ser realizado. Claro que um líder contribui ainda mais para garantir a sobrevivência do grupo.
Bom, dito isso, percebe-se logo a associação feita entre um conceito e outro: todo mundo regenera no jogo, quase como um troll! Isso até seria verdade, caso a descrição dado aos pontos de vida no jogo fosse diretamente relacionada com ferimentos físicos. E essa definição nunca foi verdade, em nenhuma edição do jogo:
“…Uma certa quantidade desses pontos de vida representam a punição física recebida. O restante, uma parte significativa nos níveis elevados, representam perícia, sorte e/ou fatores mágicos…” Players Handbook 1st edition, Gary Gigax
Vendo a descrição dos Pontos de Vida da 4ª edição, temos:
“ Pontos de vida medem sua habilidade de suportar danos, transformar golpes mortíferos em meros arranhões, e manter-se bem durante uma luta. Pontos de vida representam mais que resistência física. Representam a sorte, perícia, e determinação do seu personagem – todos fatores que combinados o ajudam a manter-se vivo durante um combate.” Livro do Jogador 4ª edição (tradução livre)
Como podemos ver, da primeira até a atual edição do jogo a definição de pontos de vida não é muito diferente. Com a extrapolação dessa mentalidade, personagens como o Senhor da Guerra puderam existir, já que sua “cura” representa um novo ‘ânimo’ dado graças a sua presença e liderança. Em nenhum momento sua cura é descrita como a capacidade de cicatrizar milagrosamente os ferimentos do grupo (algo que um clérigo e sua fonte de poder permitem). Apenas que ele levanta a moral deles. Em termos de jogo, PV. Essa noção tão simples torna os surtos de cura parecidos em conceito com as últimas linhas da definição de Gigax, sendo que cada fonte de poder pode ser descrita de forma diferente: os marciais se “curam” elevando seus espíritos, os divinos recebendo bençãos menores de suas divindades, os arcanos usando truques mágicos menores. Mas existem outras infindáveis maneiras de se descrever o motivo de sua “determinação de lutar” (=PV) aumentar (=curar). Isso concebe uma explicação para a “regeneração” de alguns poderes marciais, que significam apenas uma capacidade por rodada de elevar o moral. É isso o que o 4ª edição permite e que poucos conseguem ver: a liberdade de descrever um termo abstrato da maneira que você preferir e for apropriada. Em termos de jogo, regeneração é regeneração. Em termos de história, ele é o que você quiser.
Os surtos de cura foram incluídos no jogo como uma forma de tirar das costas do clérigo a responsabilidade de manter a aventura rolando. Eles tornam os personagens mais difíceis de matar, é verdade, mas D&D nunca foi sobre pessoas normais pagando pela própria mortalidade em masmorras escuras e esquecidas. É um jogo sobre heróis e suas grandes histórias…
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