Muitos acham que o personagens começam como heróis. Numa abordagem narrativista, isso faz todo o sentido. A história está sendo contada do ponto de vista dos personagens jogadores, que são os protagonistas. Assim, sem protagonistas não há história. Muito do problema de jogadores de D&D com essa abordagem reside no fato que o sistema não é gentil com esse tipo de mentalidade. Monstros poderosos, personagens com a possibilidade de iniciarem suas carreiras com 1 ponto de vida, além do famigerado teste “passe ou morra”, muitos dos mecanismos do jogo foram feitos para colocar nos resultados de uma rolagem de dados o destino de toda a história de um personagem.
Tentando criar um cenário mais propício para a sobrevivência dos ditos “heróis”, muitas regras caseiras e algumas edições são feitas para aumentar a tolerância do personagem ao desastre certo. Afinal, D&D comporta essa mentalidade? Minha resposta tende ao sim, mas com uma série de ressalvas. As regras estão lá por um motivo. Como entendi ao escrever o post anterior, regras também existem para estimular um comportamento. E esse comportamento não era a de representar heróis invencíveis logo nos primeiro níveis de experiência.
Do ponto de vista da forma de se jogar originalmente, toda a história era contada pós fato. Ou seja, uma aventura de D&D não era escrita para contar como o intrépido grupo de heróis derrotou o maligno Necromante de forma predestinada, mas sim apresentar um desafio, como o necromante, e lançar a pergunta “como vocês pretendem sair vivos, ou mesmo vitoriosos, dessa situação?”. Para os corajosos, astuciosos e sortudos, fama e fortuna. Para os incautos, tolos e azarados, uma morte provavelmente inglória muitas vezes resultado da própria estupidez.
Mecânicas como testes de proteção são um excelente exemplo dessa mentalidade original. O destino e futuro de um personagem depender do resultado, muitas vezes improvável, de uma jogada de dados representa essa visão de que a história é contada sempre pós fato. Nessa abordagem, um esforço muito grande para criar um volumoso histórico cheio de reviravoltas para seu personagem não só se mostrava desnecessário mas possivelmente frustrante. Uma frase de Gary Gigax resume bem essa minha última frase:
“Character background is what happens between levels one and six” (tradução livre: histórico de personagem é o que acontece entre os níveis 1 e 6)D&D não era para contar conjuntamente um romance de fantasia. Era sobre, anos depois, recontar quantos corpos caíram sob as armadilhas nefastas da masmorra do necromante, e como um único herói conseguiu sobreviver para contar a história. Quando esse mesmo personagem conseguia repetir essa mesma proeza diversas vezes, se tornava o fruto de contos lendários. É interessante notar, que nesse modo de jogo, um jogador só tem a dar méritos a sua própria sagacidade e esperteza para sobreviver tanto tempo, e não as licenças de roteiro. A sensação de ser herói era diferente do modo narrativo.
Meu objetivo não é criticar o modo narrativo. Mas ao pensar no rpg como um jogo, essa abordagem acima me parece bem apropriada. Talvez não para todos os rpgs, mas com certeza para D&D, que foi criado tendo isso em mente.
Olhando para as edições mais recentes do jogo, vejo que muito dos esforços de design foram feitos para mitigar essa mortalidade excessiva. Eu entendo a mentalidade por trás disso. Alguns jogadores se tornaram vítimas de DMs sádicos e cruéis que tinham como único objetivo contabilizar quantos corpos conseguiam derrubar ao chão em menos tempo. Acontece que o D&D também não foi feito para encorajar esse tipo de antagonismo. O DM tem um papel de adjucador imparcial, e não do pior inimigo do grupo por trás do biombo, com suas rolagens secretas. Meu ponto aqui é que nem um conjunto de regras que amenize a mortalidade no jogo vai te livrar de um DM desse tipo. Maus mestres são um problema em si.
Olhando em retrospectiva, vejo que não é necessário um novo conjunto que regras tão diferente do original para simular um modo narrativo. Tentar simular um romance em rpg é uma tarefa tão simples quanto dividir a controle de jogo com seus jogadores. Usando as regras como escritas, um mecanismo como pontos de destino serviriam para deter esse tipo morte ignomínia por parte dos aventureiros. Falhou no teste contra a visão da medusa, gaste um ponto de destino; falhou naquele desafio importante para saltar do precipício, gaste mais um ponto de destino; precisa convencer aquele pdm mala a te passar a informação que a aventura precisa para continuar, risque mais um pontinho na planilha. Acabaram seus pontos destino? Desculpe rapaz, mas sua história acabou…
Reconheço que existem outras formas de abordar isso. Tem uma em particular, que era usada por ninguém menos que Dave Arneson, me pareceu algo verdadeiramente narrativista. De fato, quanto mais entendo mais descubro que Dave tinha uma visão particularmente distinta do jogo quando comparado com Gigax. Em um futuro post comento melhor sobre isso caso aja algum interesse.
Lidar com a morte de personagens jogadores sempre será um dos calcanhares de Aquiles do hobby. Quanto antes um DM se decidir sobre a abordagem que prefere, e deixá-la clara para o grupo de jogadores, menos aborrecimento terá no futuro. Pelo menos essa é minha opinião hoje em dia.
Ótimo Post!
ResponderExcluirConcordo com tudo que disse, e vc escreve muito bem. Tava sumido eim?! Eu acompanhava seu blog desde quando fundou (em 2010), e fico feliz que tenha voltado com tanto gás!
Nós, mestres e jogadores de D&D só temos a ganhar!!!
Olá Neto, bem vindo de volta!
ResponderExcluirFiquei um pouco afastado mesmo, sabe como é, a vida de vez em quando não te deixa descansar. Mas eu tenho aproveitado um tempinho extra para tocar esse blog. Mesmo que as vezes dê uma sumida o blog continua aqui para continuar. Ainda assim, meu projeto a manter ele razoavelmente atualizado conforme o possível.
Obrigado pelos elogios. Um abraço
Parabéns. Ótima abordagem de estilos, e sua opinião sobre o assunto é bastante reveladora. Continue assim.
ResponderExcluirmuito interessante Paulo e faça a postagem sobre gigax e o Arneson vai ser bem legal
ResponderExcluirValeu pela força pessoal.
ResponderExcluir@Alvaro, estou lendo um pouco mais sobre Dave, e espero ter algo para escrever em breve.
Grande abraço a todos
um ponto interessante esta tb, nos modulos do fim dos anos 70, no fato de q os "herois" eram na maioria "aventureiros", ou seja, nao necessariamente "herois".
ResponderExcluireles eram motivados pela exploração e promessa de riqueza, ao inves de "fazer o bem".
acho q isso contribui para o fator "mortalidade"
Também penso nesse mesmo sentido. A palavra herói mudou de sentido ao longo do tempo. Usando o exemplo grego, herói era aquele que realizava grandes feitos, não necessariamente ligados a conduta ética. Na verdade, muitos eram particularmente amorais.
ResponderExcluirEsse é o grande problema dos sistemas mais recentes, a grande facilidade de sobrevivência. Me lembro de quando jogava D&D (aquela caixa da grow) o dia inteiro, teve uma vez que eu terminei o dia com o terceiro personagem, pois era fácil de mais morrer.
ResponderExcluirEu acredito que é o papel do DM, de certa forma, guiar o destino do PC sem interferir demais no livre arbítrio. Se o personagem merece viver, que viva! Caso contrário...
Fiquei curioso para saber qual era a abordagem do Dave Arneson.
ResponderExcluirPode deixar Obaldino, que farei dentro em breve.
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